quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Crônica: O guarda-chuva - A importância dos pensamentos

Era um senhor um tanto reservado, solteiro, com ingresso comprado para embarcar na melhor idade (cá entre nós, a melhor idade costuma ser aquela que a gente não tem no momento). Vizinho por pura arbitrariedade territorial e figura conhecida pela simpatia de dar inveja aos retirados. Todos os dias passava por mim, e sem mudar de expressão levantava a voz como quem tinha que levantar uma tonelada e deixava escapar dos lábios algo parecido com um “ooopa”, seguido de uma embromação, que não era exatamente o meu nome, nem o de nenhum dos cumprimentados pelo vizinho.


Ocorreu foi que um dia, algo que não estava lá antes entrou em cena, durante os passos que precederam o encontro, parecia que alguma coisa daria ao vizinho a chance de cruzar o meu caminho sem o ardor da saudação. Chovia, avistei de longe o cidadão que vinha em minha direção. Ele trazia na mão algo que seria naquele dia mais que o abrigo da chuva, era uma espécie de livre-arbítrio em versão estampada e automática. Ao passo que ele chegava mais perto, o seu amigo guarda-chuva descia mais. No início cobria os olhos, depois continuou descendo, até que cruzou o meu caminho com o rosto coberto. Sim, ele estava livre da perturbação momentânea que antecede a simples decisão de cumprimentar ou não àquele que vem em sua direção.


Resolvi lançar mão de todos os “ooopa’s” recebidos antes. Pensei: - então eram todos de veneta, um árduo dever criado por uma ética imaginária de vizinho. Com mais calma, voltei atrás, pensando bem, lembro-me de ter sofrido a angústia da dúvida quando vinha lá de longe aquele conhecido, que nem era tão conhecido assim, a partir daí você só têm alguns poucos segundos para decidir, falo ou não falo? Quando o sujeito se aproxima, te lança aquele olhar que se por acaso coincidir com o momento em que você está olhando, existem grandes chances de ter ali um cumprimento, se não, é necessária muita bravura de um dos envolvidos pra não dar a vitória ao “eremitismo”. Ainda dizem que o “homem é um animal social”.


Pensemos então: quantos de nós pensam no "bom dia" antes de lançá-lo àquele que vai em direção oposta? A ciência avançou no sentido de perceber o quanto os nossos pensamentos implicam em nosso organismo. Já descobrimos que a atividade cerebral gera impulsos de energia, de maneira que transmutamos fluidos magnéticos, da mesma forma que processamos o ar respirado. Será que vamos persistir na analogia e lançar no ar apenas gás carbônico?


É uma grande mudança de perspectiva notar que o “boa tarde”, o “bons sonhos”, o "boa leitura" e, principalmente, o “boa prova” podem ser promovidos de votos a ações efetivas. Isso quer dizer que deixamos de desejar e passamos a interferir. É claro, o salmão não passou a migrar para a água doce na época da reprodução depois da descoberta dos pesquisadores. Já o faziam antes, e nosso pensamento também. A nossa intuição não nos deixa duvidar. Quantas vezes deixamos escapar um “tomara que caia” quando um apressado esbarra em nosso ombro, ou pensamos alto um “vai errar” quando o jogador do outro time vai cobrar o pênalti? Na mão inversa, podemos usar o nosso pensamento de maneira positiva, impregnar o nosso ar com vibrações positivas. O cumprimento deve então ser promovido de simples ritual para ação invisível. A fala é a materialização, imagem sonora, representativa da nossa vontade.

Pois bem, nadamos no mar de nossos próprios pensamentos e podemos nos dar conta que cuidar do meio ambiente quer dizer começar por nossa atividade mental. Por falar em água, esqueci o vizinho lá na chuva. E se eu passar por ele amanhã? Devo iniciar ou retribuir o “ooopa”? Por hora posso deixar a decisão de lado, afinal de contas, o tempo ainda não mudou e pra todos os efeitos ele, o guarda-chuva, estará conosco mais uma vez.

Crônica: Dor de cabeça é muito engraçado - Empatia o que é?

As rotineiras viagens de ida ao trabalho e volta ao lar são verdadeiros testes de paciência e criatividade. Eu, que não fujo desse desafio, adoto alguns artifícios para amenizar essa tarefa que, por vezes, aborrece mais do que o próprio ofício. Um dos truques é aproveitar o tempo para ler, ouvir músicas e audio-books, planejar ações para o que não encontramos ocasião e quando possível, dormir. Outro artifício é alternar o itinerário e os meios de transportes: algumas vezes eu dirijo, outras o motorista do coletivo é quem se preocupe. Revezo entre dois ônibus, o metrô e um ônibus, ou ainda, um ônibus e uma barca. O certo é que a alternativa escolhida, normalmente, é a que me toma mais tempo. Mesmo assim, não mudo a receita.

Foi numa dessas escolhas equivocadas, que me animei pensando em cerrar as pálpebras no retorno ao lar. Escolhi o ônibus, que além de tudo, tem uma parada mais próxima do local onde trabalho. Um desses a que chamam de 'tarifa' (a diferença do preço explica), ou o popular “frescão”. Antes de subir, estiquei os pés e espiei pelas janelas. Não havia ninguém de pé. - Que alegria! pensei. Ao embarcar, notei que tinha conquistado um privilégio. O primeiro a não encontrar um acento disponível. Tivesse visto antes, talvez pensasse em descer, esperar o próximo. Mas a tarifa já havia sido entregue ao motorista, que inclusive também era o cobrador (e eu pensando que acumulava funções no meu trabalho).

Escolha já feita. Restava buscar a melhor maneira de enfrentar as prováveis duas horas de viagem, em cima das canelas, entre trancos, buzinas e reclamações dos outros passageiros. Encostei a cintura na lateral de um dos bancos, saquei da mochila um livro com uma das mãos e uma pêra com a outra. Depois da fruta um chocolate. Como foi que me equilibrei sem as mãos? Nós os passageiros das conduções lotadas desenvolvemos técnicas de dar inveja aos surfistas.

Alguns minutos depois do embarque, já podia contar dezenas de olhos fechados e bocas escancaradas. Lembrei-me do trecho de uma bonita música que diz "estou acordado e todos dormem, todos dormem, todos dormem...". Mas algo havia de quebrar o silêncio. O colega de odisséia, que estava no banco a minha frente, deixou escapar um gemido que quase fez estremecer as janelas do veículo. Era um ronco estridente e acidentado. Com grande variação de altura e textura. Um dos passageiros do banco logo à frente, reconheceu o sonoplasta e cutucou o colega ao lado. Rapidamente os demais despertaram do sono e como que dividissem uma boa nova, todos se entreolhavam e riam, alguns gargalhavam de maneira quase tão expressiva quanto a do ronco. Enquanto o sujeito indefeso dormia. No início, respondi aos olhares para mim lançados, com um sorriso apático de condescendência, essa expressão de pamonha que a gente adota nos primeiros instantes, talvez por falta de inclinação para uma postura de mais personalidade.

Começou a mostrar-se a criatividade humana. Ouviam-se cochichos que diziam "acorda o Shrek", "furou o cano de descarga", "tem um porco no viva-voz", "queria um trator desse no dia da tempestade no Rio", "me empresta uma meia para obstruir a passagem?" e daí pra mais.

Tudo isso seria engraçado se não levássemos em conta que o ronco indica um problema de saúde. Dificulta relacionamentos e frustra noites de sonos, o que por sua vez atrapalha o rendimento no trabalho e aumenta irritabilidade. O ronco pode ainda ser um sintoma de um problema bem maior como desvio de septo, rinite ou mesmo um tumor. Nesse ponto, acabou a graça.

Não vamos cair na besteira de condenar a boa filosofia dos sorrisos e do bom humor. Se no lugar do "alvo" nós pudermos rir também, a atitude é aceitável. A velha fórmula do "rir com o outro, não do outro". Afinal, se uma forte pancada não tem graça, uma doença, não importa a gravidade, não tem graça, nem mesmo uma leve dor de cabeça tem graça, por que é que um tombo, ou um problema respiratório externado pelo ronco teriam graça?

Nem preciso, mas na sessão "eu confesso", digo que também já achei e, as vezes, ainda acho graça. O convite que deixo é a tentativa de educar nosso comportamento, para uma atitude que leve mais em conta a dificuldade do "outro", do "irmão", ou do "próximo", como preferirem. Num caso como esse, tentar suportar sem alarde e troça, já é um esforço pela caridade. Problemas de planejamento a parte, o caos do trânsito é também o reflexo da ausência dessa educação. Dezenas de motoristas solitários lançam seus veículos na frente de coletivos nos quais 50 passageiros se acotovelam. Outros usam o acostamento para sair de trás de um veículo e parar justo na frente do mesmo carro. Uma ultrapassagem que garantiu um ou dois segundos a mais para o apressado, mas que poderia significar mais 30 minutos de retenção, no caso de uma colisão.

Esse esforço de paciência necessário não foi a resposta da passageira que viajava ao lado do homem que roncava. Ela pediu licença, despertando o sujeito do sono e levantou-se. Eu é que não posso me queixar. Agradecido, pude me sentar e dormir também. Não tenho histórico, mas se ronquei, o meu companheiro de banco foi mais caridoso comigo.